19 de out. de 2009

"O ANTICRISTO" de Lars von Trier

Por Hudson Nogueira

Ao analisar uma obra cinematográfica, um crítico deve saber lidar com algumas premissas. Como, por exemplo, procurar manter um certo distanciamento do objeto em análise - a fim de não cair em anacronismo, seja por admiração pelo autor ou aversão ao mesmo. Sobre esse preceito, não me considero na condição de crítico. Até por falta de experiência e produção acerca do tema, procuro evidenciar minhas impressões sobre filmes e cineastas de forma simples, mas sem perder o olhar crítico sobre determinado filme ou diretor.

Ao me deparar com o aguardado último trabalho do dinamarquês Lars von Trier, O Anticristo (The Antichrist, 2009), tentei, até onde pude, ingressar na proposta do diretor – uma incursão no gênero de horror. Procurei levar em conta que o filme foi realizado ainda sob longa depressão vivida por Trier, sendo o principal reflexo presente em O Anticristo. A narrativa constituída por Prólogo, três capítulos e Epílogo (método já utilizado em outros filmes do diretor) procura emanar a angústia de um casal traumatizado pela morte do filho. Ele e Ela (pois ambos sequer pronunciam seus nome na trama), o casal formado por Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, vivem numa linha tênue do extremo à depressão.

O sexo é o ponto de equilíbrio entre o casal. Já no primeiro plano, o do Prólogo, um ato sexual em preto e branco e câmera lenta contrasta com a cena da morte da criança, utilizando a mesma técnica (câmera na mão) e demostrando uma sincronia entre as distintas situações, dos extremos (a penetração explícita dele e o orgasmo dela) à sutileza, neste caso, a ingênua queda da criança pela janela. Aí começa o grande problema de O Anticristo: a pretensão. Um jogo de lucidez e depressão toma conta do filme sem mostrar efetivamente onde quer chegar, se é que a intenção de Trier era chegar a algum lugar.

Outra problemática é a abordagem fantástica e extrema que O Anticristo pretende atingir. Sustos previsíveis, como na cena onde Ele enxerga a raposa que ladra com voz satânica. Ou quando encontra o corvo no interior da árvore. Mutilações e histeria proporcionados através de loucura e sexo extremo, algo que David Cronenberg retratou minuciosamente em Crash – Estranhos Prazeres (1996). Referências do cinema fantástico como Cronenberg, Dario Argento e John Carpenter poderiam ser usadas por Lars von Trier para dar maior vivacidade ao horror que se omite na trama. É claro que não se deve cobrar do diretor um filme de horror à altura dos especialistas citados acima, mas sua abordagem sobre o gênero não fez jus à expectativa criada em torno de seu O Anticristo.

Ao fim e ao cabo, o filme traz consigo uma vaga proposta sobre o cinema de horror, caindo num emaranhado de conflitos psicológicos e atos viscerais, como quando Ela o masturba até que Ele, insconsciente, ejacule sangue. Ou a cena de automutilação, quando Ela corta seu clitóris. Enquanto Trier estiver em depressão, continuará refletindo em seus filmes ideias que estão bem abaixo do que ele já provou saber expor, como em Europa (1991).

Ao escrever um pequeno texto em primeira pessoa (algo que raramente faço) e aqui explicar minhas reservas com Lars von Trier, confesso que tentei ingressar no universo do diretor e nas suas intenções, calcado nas premissas que citei no início do texto, mas não foi desta vez que obtive êxito. Até porque, é bom salientar algo que o próprio diretor sentenciou após ser indagado sobre sua estética cinematográfica e personalidade polêmica: “não me levem à sério, eu apenas faço filmes sem a preocupação do que eles irão representar”.

13 de fev. de 2009

"SHORTBUS" de John Cameron Mitchell

Segundo David Harvey, por “condição pós-moderna” pode-se compreender a relação entre tempo-espaço abordando temas como arte, urbanismo, cultura e cinema. E, justamente por esse último viés, ou melhor, por uma compilação desses elementos, o cineasta John Cameron Mitchell apresenta uma obra instigante sobre a prática efetiva dessa tal condição. Embora não seja muito apreciador do termo “pós-moderno”, reconheço que tal condição é vivenciada por sociedades urbanas, acerca de suas concepções e relações humanas, sejam elas nos campos público e privado, e essas vivências são levadas a um caráter de libertação de pensamento e ação efetiva, essencialmente na prática sexual abordada por Mitchell.

Shortbus (2006) é uma ode ao Cinema Extremo que eclodiu na década de 1970, em que a libertação sexual e o livre arbítrio autoral ganharam destaques nas telas com obras até então transgressoras para a sociedade. O filme é repleto de cenas marcantes e provocadoras no que diz respeito à sexualidade. Quebrar paradigmas não é a intenção do cineasta. Pelo contrário, expor o espírito e principalmente a prática de libertinagem dos personagens principais da trama de forma natural (por vezes cômica), por intermédio de muito sexo e diálogos inteligentes sobre suas condições sexuais.

Uma Nova Iorque pós 11 de setembro como animação remete ao imaginário do espectador uma cidade coadjuvante no pensamento de seus habitantes por um olhar voyerista. Esse recurso é corretamente trabalhado como conexão entre os distintos personagens. E essa conexão é sacramentada em uma boate GLS chamada Shortbus, cujo significado literal da palavra, em inglês, pouco importa aos seus frequentadores, e pelo espectador. O que importa dentro de Shortbus (o lugar) é a liberdade das práticas e reflexões acerca do sexo, que é tratado com extrema naturalidade, ou algo essencial na vida pós-moderna (segundo o filme).

O mosaico de cenas instigantes se dá do início ao fim do filme, quando surgem os personagens e suas condições na estória. Um jovem filma-se praticando auto-felação enquanto é vigiado e fotografado por um vizinho voyeur. Ao mesmo tempo, uma terapeuta sexual transa de forma incessante com seu companheiro, assim como um jovem praticante de sadomasoquismo questiona sua condição e o pensamento sobre sexo com sua algoz. Sequências de sexo, afeto e carência de tal afeto permeiam o filme. E tudo com muita naturalidade, mesmo que de forma explícita, sem se preocupar com consequências e clichês, Mitchell, que também assina o roteiro, mescla a realidade das práticas com o imaginário da cidade criada paralelamente aos personagens.

A ousadia das cenas é um dos pontos altos do filme. Especialmente duas destas cenas se destacam e, por que não dizer?, chocam o espectador mais desavisado: o ménage à trois contorcionista proporcionado pelo casal gay “James” junto com seu novo admirador, ao som do hino estadunidense (aqui se nota o sentimento pós-11-de-setembro) sendo cantado em uma situação no mínimo inusitada. Outra passagem marcante é a fuga da terapeuta sexual de sua consulta perante um casal em crise, para o seu tão almejado orgasmo (a personagem é pré-orgásmica), onde ela vivencia a situação num sonho que se passa na Nova Iorque imaginária proporcionada pelo diretor. O sonho termina com um final muito utilizado ao longo da cinematografia mundial: o mar.

Em Shortbus, John Cameron Mitchell, além de explorar a liberdade sexual explícita da famigerada pós-modernidade, remete a referências do subversivo Cinema Extremo. As influências são notáveis no filme: desde a ousadia explícita e perversão, como em Saló (1976), de Pasolini; até a rasgada homenagem a Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, na ousada cena do ovo em forma de vibrador. A sensação ao assistir o filme de Mitchell é semelhante à leitura dos livros eróticos do escritor maldito Henry Miller ao som de Yo La Tengo. Contudo, vale ressalvar aos mais desavisados e puritanos que forem assistir ao filme: Shortbus é “foda”. Literalmente.

9 de fev. de 2009

Em Cartaz: "LEONERA"

Concorrente à Palma de Ouro em Cannes 2008, onde foi ovacionado pela crítica, Leonera, filme do argentino Pablo Trapero, retrata com uma virtuosa densidade dramática um crime mal explicado e compreendido através de sua principal personagem – Júlia Zarate (em uma bela interpretação de Martina Gusman), uma jovem universitária que acorda de um pesadelo para, literalmente, cair em outro. Porém, desta vez um pesadelo real. Um provável triângulo amoroso entre Júlia, seu namorado misteriosamente assassinado e Ramiro (Rodrigo Santoro, em apenas alguns planos, contudo fundamentais para enriquecer a trama) proporcionam, em um lúgubre apartamento, apenas o início do calvário de Júlia.

A situação da personagem ganha um outro enfoque, um novo ambiente – o cárcere. Com o decorrer da trama, nota-se que o roteiro não faz concessões óbvias ao crime que dá, por consequência, a detenção de Júlia, mostrando-a confusa e refutando a idéia de maternidade. A atuação da atriz Martina Gusman, sobre semblantes carregados e sem perspectivas em seu novo destino, proporciona ao filme uma carga dramática acentuada (mas sem exageros), enriquecendo a centralização do filme: é um só personagem e seu espaço.

O espaço em questão é o cárcere, ao qual Júlia terá de adaptar-se, pois terá de viver neste difícil ambiente por tempo indeterminado, até seu julgamento. O filme poderia se encaminhar para uma condução melodramática das agruras da personagem principal, mas não é isso que acontece. Pablo Trapero insere o espectador em uma jornada aos bastidores do cárcere feminino, mostrando suas estruturas e mazelas, o convívio entre mulheres condenadas, muitas delas com crianças crescendo sob um ambiente inadequado. Eis a principal referência que a estória em questão proporciona: o convívio e a adaptação de uma jovem mãe detida, ainda sem saber o que o futuro lhe reserva.

Os detalhes do cotidiano carcerário feminino dão a vivacidade e a crueza da realidade vivida nos presídios, desde a ausência familiar, o flerte homossexual sob forma de necessidade humana de afeto e as relações de poder e castigo do sistema. Voltando ao calvário da personagem, um adendo à trama aumenta a aflição de Júlia: o nascimento e a aceitação de seu filho, o pequeno Tomas, fruto da confusa (e pouco dissecada no filme) relação amorosa do triângulo composto no começo da trama. Antes mesmo de haver um plano filmado, a situação fica evidente nos créditos iniciais, ao som de uma música que sugere a exaltação da infância.

Mesmo com o oportuno interesse de sua mãe, personagem até então ausente na estória, e algumas visitas de Ramiro, que por sua vez preza pelo egoísmo para tentar se safar da condenação, consequentemente selando o destino de Júlia, a jovem mãe passa a ganhar respeito e consideração no presídio através de seu convívio com a veterana Marta, sua tutora, uma espécie de matriarca que adotou a jovem confusa e frágil detenta. Trapero já havia retrato em outro filme, o ótimo O Outro Lado da Lei (El Bonaerense, ARG, 2001), o submundo e as individualidades, o universo das prisões e suas relações de poder, acentuando ainda mais essa tenacidade em Leonera.

A luta de Júlia para tentar sair da prisão e, principalmente, para não perder a guarda de seu filho é a via final para o desfecho da trama. Pois progressivamente, a película vai mostrando a jovem mãe aflorando sua beleza e maturidade maternal, mesmo num meio onde o ser humano é consumido por suas aflições. Vale questionar agora o porquê de Leonera ser o nome do filme?

Contudo, não vale supor ou apontar sugestões para chegar à resposta desta pergunta. Cabe ao expectador enxergar e concluir o que é ou o que (quem) pode ser Leonera, pois o filme de Pablo Trapero foge do “padrão” de abordagens dramáticas da classe média argentina e suas nuances para um trabalho referencial sobre dramas carcerários, diferindo do charmoso “cinema urbano” argentino.



Filme em cartaz em Porto Alegre, na data deste post.

4 de fev. de 2009

O Olhar Estrangeiro: "A ALEMANHA DESCOBRE A ÁFRICA"

As férias acabaram, inclusive aqui. Claro, durante esses períodos muitos de nós viajam. Pois o ano reinicia, agora, com o mote viagem. O Olhar Estrangeiro é a série de posts para fevereiro e trata justamente de obras de diretores que tiveram um olhar diferenciado para determinadas partes do globo. Como Werner Herzog, que já filmou em quase todo canto do planeta. Inclusive, no Brasil, filmou partes de Cobra Verde, filme a ser "dissecado" aqui futuramente.

Se a primeira metade de Cobra Verde se passa no Brasil, a segunda se passa na África, para onde o bandido Cobra Verde é enviado como punição por ter engravidado as filhas do patrão. Lá ele encontra disputas tribais e se vê em luta contra a natureza e os instintos mais primitivos do ser humano. Mas falar de natureza e da ação do homem sobre ela não é novidade na filmografia de Herzog. Em 1969, ele esteve na África do Norte para filmar um dos seus primeiros grandes "delírios", Fata Morgana. Narração em off da origem do mundo, imagens do deserto em que o homem só vai aparecer depois de mais de 20 minutos de filme. Cadáveres de animais que tiraram seu sustento do planeta, para depois tudo devolverem. Restos de aviões, velhos veículos. A criação, o paraíso, a era de ouro. Obsessão por lagartos, futilidades sobre tartarugas. Um duo (horrível) de piano e bateria num salão de festas vazio. Leonard Cohen e tudo isso pra mostrar o fracasso dos deuses. Não se encontram concessões nos filmes de Herzog. E provavelmente não havia mesmo melhor lugar para retratar a miragem (exatamente o significado de Fata Morgana) do ser humano que o deserto norte-africano.

Mais recentes e menos contundentes são duas produçoes alemãs das quais falarei agora. A primeira delas é Lugar Nenhum na África, de Caroline Link. O filme foi o ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2003. Um prêmio estrangeiro sobre um olhar estrangeiro. Seria mais um típico filme de perseguição nazista a judeus, se a família que forma o núcleo do filme não tivesse se instalado no coração da África, mais precisamente, no interior do Quênia. Eis o mote: o desafio da adaptação a uma outra realidade. O pai, antes da chegada de esposa e filha, sofre com a malária e é salvo por um funcionário da fazenda onde vai trabalhar. Este, chamado Owuor, é a figura do africano humilde, servil e amigo. Tanto que "adota" a pequena Regina, filha do casal Redlich. Ela lhe tem tanto apreço que a adaptação torna-se fácil. Na medida em que cresce, é ela quem se torna a ligação dos pais, sobretudo da reticente mãe, com a cultura local, chegando a levar a mãe a uma cerimônia dos nativos.

Linha semelhante segue o filme de Hermine Huntgeburth, A Massai Branca. Neste, a turista suíça Carole, no penúltimo dia de férias no Quênia junto a seu namorado Stefan, conhece Lemalian, guerreiro da tribo Samburu, e se encanta por ele. O encantamento é recíproco e, numa atitude inverossímil (embora o filme seja baseado em fatos reais), ela abandona tudo pra viver com Lemalian. Se nos braços do guerreiro Carole vive grande paixão, a realidade é falsa adaptação. Nascida em berço capitalista, nunca vai se adequar aos costumes do lugar. Todo o tempo ela está tentando remoldar a própria vida e as dos que estão ao seu redor. Ela também pega malária (ah, os clichês...). Há o choque de ver uma mutilação feminina. Há o comércio que ela abre e o hábito local de dar crédito aos amigos. Mas... todos são amigos ali na aldeia. Há o ciúme. Mas não há possibilidade de conciliação.

Pode-se dizer que os filmes de Herzog trazem consigo um olhar fatalista e, no que diz respeito a Fata Morgana, contemplativo e fatalista. Nos filmes de Link e Huntgeburth, o que mais pesa é, além do formato convencional, ora a fascinação pelo diferente ora o conflito. Independente do rótulo que se possa dar a estes filmes, creio que representam bem estes olhares germânicos para a África.

Que venha a próxima viagem!

31 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel Oliveira: "O PRINCÍPIO DA INCERTEZA"

"Tudo o que é interessante é fingimento." É o que afirma Vanessa (Leonor Silveira) durante uma conversa com José Luciano/Touro Azul (Ricardo Trepa), na piscina da casa de Antonio Clara/Cravo Roxo (Ivo Canelas) e Camila (Leonor Baldaque).

Vanessa é a cortesã, a mulher que subiu na vida às custas de atividades duvidosas e mantém um night club onde as roletas e a oferta de sexo dão o tom. Ela é amante de Antonio, amigo de infância de José Luciano. Mas o centro em torno de quem todos esses personagens giram é Camila, vinda de família arruinada do Porto, por conta das dívidas de jogo do pai. Camila é quieta, calada, uma típica "boazinha" e, por isso, para a criada Celsa (Isabel Ruth), que criou os dois rapazes juntos, ela é a garota perfeita para se casar com Antonio. Celsa quer livrá-lo da amante através desse casamento que é arranjado sem quase nenhuma interferência. Camila também esteve com Antonio e José Luciano na infância. O segundo nutre uma paixão secreta por ela. Paixão que só é revelada assim que ele sabe do arranjo casamenteiro, mas ela o responde dizendo que, apesar de ter esperado por essa confissão desde muito tempo, o coração dela não será de José Luciano nem de Antonio. Enfim... um casamento de conveniência. A confissão de Touro Azul é a pequena interferência que não será suficiente para que o sacramento deixe de acontecer.

O casamento não é feliz. Sabemos disso desde o primeiro momento, porque a impassibilidade de Camila incomoda. Num jantar oferecido para amigos mais próximos, Vanessa a compara a uma mutante, justamente por tal qualidade da jovem. Noutro momento, Camila conta a Daniel Roper (Luís Miguel Cintra), amigo e admirador, um homem mais velho que, junto ao irmão Torcato (José Manuel Mendes), intermediara o acerto matrimonial, um episódio violento entre ela e o marido, durante férias na Itália, onde Vanessa também estava presente. "As habilidades que as mulheres fazem para saltar por cima do sofrimento são extraordinárias", ela diz. Mais à frente, no mesmo diálogo, Daniel dá mostras de sua perturbação: "Por que é tão invulnerável? Tão nova e tão invulnerável..."

Ainda que tenha a força de um cinema-teatro e a obra se realize como cinema, há uma marca literária importante. Os diálogos são primorosos. Aqui é preciso lembrar que Manoel de Oliveira contou com a presença de Agustina Bessa-Luís, colaboradora fiel, além de autora do livro que deu origem ao filme, Joia de Família, o primeiro da trilogia O Princípio da Incerteza, que dá nome ao filme.

Mas os diálogos são mesmo marcantes quando as duas mulheres, Camila e Vanessa, duelam. Isto se dá na primeira vez em que Camila encontra Vanessa e Antonio sozinhos na casa. E se repete num momento de desespero, próximo à resolução final do filme, quando a cortesã busca a jovem senhora pra pedir-lhe determinada quantia. Voltaremos a este ponto.

A contida e "boazinha" Camila se revela aos poucos. Num diálogo com a criada dos Roper, fala da dualidade de Joana d'Arc, de quem é devota. Sua bondade é inteligência, frialdade perante aqueles que mantêm um certo poder sobre ela. Isto fica mais evidente quando ela narra uma história de família, em que o pai a leva ao cinema pra que ela sofra abuso de um credor de jogo. Então fica claro que a doce e fria Camila é, na verdade, a "deusa da vingança".

Vingança que ela exerce contra Vanessa, quando nega a ajuda financeira e gargalha. Contra Antonio, indiretamente, porque quando os credores da cortesã aparecem no night club para "cobrar sua dívida", é ele quem sofre a pior das consequências. Quando a jovem parece estar livre de todos que a mantiveram sob certo jugo, ainda há tempo de uma revelação aterradora sobre a única mulher nesta história que parecia inocente. Ainda assim, Camila mantém-se invulnerável e colhe para si os louros da vitória. Figura perturbadora essa moça, porque se de Vanessa pode-se esperar tudo, Camila é dissimulada ao extremo. Mas capaz de causar ferimentos mais mortíferos.

Impressionante o domínio de Oliveira sobre os atores. Não há um que não pareça estar à vontade durante a atuação, desde a então estreante Leonor Baldaque - por sinal, neta de Augustina Bessa-Luís; passando pela "atriz-fetiche", Leonor Silveira (atuação e beleza explêndidas) e mesmo pelos discretos (e era necessário que fosse assim - é uma história de mulheres) Ivo Canela e Ricardo Trepa - opa, outro vínculo familiar: Trepa é neto de Oliveira. O Princípio da Incerteza (2002, França/Portugal) é um belíssimo filme em que a complexidade nebulosa dessa figura feminina de Camila é o grande mote, assim como em outros filmes do diretor.

Acreditamos que O Princípio da Incerteza foi uma escolha feliz pra encerrar a homenagem aos 100 anos de Manoel de Oliveira e o ano deste blog. Esperamos que estejam conosco no próximo ano e nos seguintes também, que esta relação entre blog e leitores tenha a longevidade de um Oliveira e o brilho de seu cinema. Entrem com o pé direito em 2009. Sucesso!

A equipe

29 de dez. de 2008

"2 FILHOS DE FRANCISCO" de Breno Silveira

O filme 2 filhos de Francisco (2005, Breno Silveira) merece ser visto sem preconceitos. Acho que esse filme é um pouco como a fala do presidente Lula, em um comício anos atrás na cidade de Sorocaba. Após o Suplicy contar a história de seu nome e sua família, Lula diz: “Meu sobrenome é Silva. Quantos 'Silva' existem aqui hoje? Eu não preciso contar a história da minha família.”

A história da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano é narrada nesse filme, que narra a história de muitos brasileiros. Não a história completa, mas partes significativas. Apesar do aparente clichê – sofrimento, amor, sucesso – a riqueza do filme não está na particularidade da dupla: o sucesso, mas no que sua história tem de universal, de brasileiro. E é justamente essa parte – muito mais interessante, aliás – que ganha relevância no enredo.

A família protagonista aparece na maior parte do filme vivendo em condições bastante precárias. É a típica família brasileira que costumeiramente é esquecida; que vive em casas onde chove e o chão é de terra; seus membros são engraxates na rua e cada um têm que lutar para não ser mais um faxineiro, mais um "pião" de obra semi-analfabeto.

Sobre a obstinação que Francisco tem em transformar seus filhos em cantores, ela é um exemplo para os sonhos de sucesso contemporâneos. Sua luta é para que eles não sejam mais uns faxineiros ou tenham qualquer outro emprego precário e mal remunerado, e essa luta não se faz de uma hora para outra, mas sim com trabalho e sacrifício de toda a família. Não é o enriquecimento fácil da loteria ou o sucesso instantâneo do Big Brother. É uma vida de dedicação permanente; acordar cedo, ensaiar, ir para a estrada, ficar longe da família, flertar com a miséria e a fome. Essa é também a diferença entre trabalho e esmola, que a fala da criança engraxate carrega.

O filme, apesar de travestido de um romantismo piegas, não é só um final feliz. Essa dupla sertaneja não é a única: não era antes do sucesso, quando dividia as rodoviárias, as filas da rádio, as gravadoras e não é a única agora. No mundo de hoje, qual é o lugar dessa música, o sentido dessas letras? O Credicard Hall cheio, no fim do filme, aponta que sim, ainda há muito espaço para eles, mas a competição e a disputa por reconhecimento é um trabalho permanente desses cantores; vide a carreira de altos e baixos da filha de um deles: Wanessa Camargo, ou da extinta dupla Sandy e Junior, ou dos muitos outros goianos.

Nesse enredo, o critério de avaliação da música não é se ela é boa ou ruim, mas sim sua valorização pela história que carrega. A música “É o Amor”, agora, tem uma história, e isso a retira da banalidade. Da banalidade da própria letra. Da banalidade de ser mais uma música de mais uma dupla sertaneja.

O melhor do filme realmente não é o que seu enredo tem de particular: o êxito de Zezé di Camargo e Luciano, mas o que ele destaca de universal: as tragédias, a luta. É por essa parte que a família de Francisco merece respeito. Ela e a de todos os Franciscos que existem. Os "piões" de obra pais de faxineiros e engraxates.

26 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel Oliveira: "PORTO DA MINHA INFÂNCIA"

A memória. Mais uma vez a memória é a matéria-prima de um filme de Manoel de Oliveira: Porto da Minha Infância, de 2001, que foi encomendado pela organização da iniciativa Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura, nos traz as reminiscências de Manoel de Oliveira a respeito da cidade onde nasceu.

O filme principia com um maestro que rege uma orquestra invisível - referência a uma cidade que não mais existe? Assim, como narrador em off, Manoel fala de uma Cidade do Porto de outros tempos, mas que o viu nascer. Lá estão as ruínas da casa onde nasceu e cresceu, além de ali ter surgido sua paixão pelo cinema. Sua narração é entrecortada, em vários momentos do filme, por uma canção na voz de sua esposa, Maria Isabel. Canção cuja letra é a poesia de Guerra Junqueiro, Retorno ao Lar.

Passeamos com o diretor pelos cafés, pelos lugares de operetas (ele próprio, junto com Maria de Medeiros, aparece como ator de uma opereta, sendo observado por sua "versão jovem" da plateia), pelas ruas, os marcos que já não existem... num dado momento, quando ele fala de sua confeitaria preferida durante a infância, ouvimos dele: "Foi-se embora a confeitaria e, com ela, os pastéis." Atualmente, no lugar do luxuoso comércio, há uma decadente loja de roupas.

No Palácio de Cristal havia inúmeras exposições, sobretudo de carros e flores. Numa dessas exposições, encontramos duas figuras - serão eles os poetas Fernando Pessoa e José Régio? Fica a suspeita. Depois, Manoel recorda a família e sua paixão de infância, a prima Guilhermina.

Noutro momento, há a participação da escritora Agustina Bessa-Luis lendo trecho de um texto de própria autoria. Também temos Manoel a divagar sobre seus antigos amigos, com quem costumava dar asas à imaginação pelas ruas do Porto. Entre eles está o poeta Adolfo Casais Monteiro, que foi perseguido e preso pelo regime ditatorial português e que veio a morrer no Brasil.

Conhecemos também a primeira sala de cinema do Porto, a High Life, que mais tarde se tornaria o Cinema Batalha.

Mais uma divagação e estamos com Manoel frente à Camisaria Confiança e à Rua Santa Catarina, santa que era a padroeira das costureiras que participaram involuntariamente do primeiro filme realizado em Portugal, por Aurélio Paz dos Reis. Em seguida, uma reprodução do pioneiro do cinema português filmando a movimentação dos operários da Porto 2001. Manoel diz, antes de calar: "A cidade está a ser renovada. Mas por muito que lhe façam, é sempre o meu porto de infância, com um fio d'ouro a correr a seus pés."

Emociona a sequência em que Porto nos é mostrada mais uma vez e que termina em cena que não só remete, porque é igual, com exceção das luzes, à cena de abertura de seu primeiro filme, Douro, Faina Fluvial, de 1931.

O filme é curto, não alcança 60 minutos. Mas é o suficiente para mais uma vez viajarmos pela memória junto ao longevo diretor.

Encerro este texto com trecho da poesia Europa, de Adolfo Casais Monteiro, cuja leitura durante o filme é um dos momentos marcantes:

I

Europa, sonho futuro!
Europa, manhã por vir,
fronteiras sem cães de guarda,
nações com seu riso franco
abertas de par em par!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
em que arda enfim, falsa grandeza,
a glória que teus povos se sonharam
— cada um para si te querendo toda?

Europa, sonho futuro,
se algum dia há-se-ser!
Europa que não soubeste
ouvir do fundo dos tempos
a voz na treva clamando
que tua grandeza não era
só do espírito seres pródiga
se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram
os que nunca perguntaram
a raça por quem serviam.
Tua glória a ganharam
mãos que livres modelaram
teu corpo livre de algemas
num sonho sempre a alcançar!

Europa, ó mundo a criar!

Europa, ó sonho por vir
enquanto à terra não desçam
as vozes que já moldaram
tua figura ideal,
Europa, sonho incriado,
até ao dia em que desça
teu espírito sobre as águas!

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,
virás um dia? virá o dia
em que renasças purificada?
Serás um dia o lar comum dos que nasceram
no teu solo devastado?
Saberás renascer, Fénix, das cinzas
do teu corpo dividido?

Europa, tu virás só quando entre as nações
o ódio não tiver a última palavra,
ao ódio não guiar a mão avara,
à mão não der alento o cavo som de enterro
— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,
o homem que sonhaste, Europa, seja vida!

II

Ó morta civilização!
Teu sangre podre, nunca mais!
Cadáver hirto, ressequido,
á cova, à cova!

Teu canto novo, esse sim!
Purificado,
teu nome, Europa,
o mal que foste, redimido,
o bem que deste,
repartido!

Aí vai o cadáver enfeitado de discursos,
florindo em chaga, em pus, em nojo..
Cadáver enfeitado de guerras de fronteiras,
ficções para servir o sonho de violência,
máscara de ideal cobrindo velhas raivas...
Vai, cadáver de crimes enfeitado,
que os coveiros, sem descanso,
acham pouca toda a terra,
nenhum sangue já lhes chega!

Sobre o cadáver dançam
teus coveiros sua dança.
Corvos de negro augúrio
chupam teu sangue de desgraça.
Haja mais sangue, mais dançam!
E tu levada, tu dançando,
os passos do teu bailado
funerário!

Mas do sangue nascerás,
ou nunca mais, Europa do porvir!

E a mão que te detenha
à beira do abismo?
Do sangue nascerá!

E braços que defendam
teu dia de amanhã?
Do sangue nascerão!

O sangue ensinará
— ou nova escravidão
maior há-de enlutar
teus campos semeados
de forcas e tiranos.

De sangue banharás
teu corpo atormentado
e, Fénix, viverás!

25 de dez. de 2008

Em Cartaz: "GOMORRA"

Filmes sobre máfia em geral costumam apresentar uma linearidade em suas narrativas. Tal peculiaridade visa enfocar a alta hierarquia das famílias mafiosas através de suas nuances e ramificações. O tom obscuro e por vezes nefasto dos personagens que interpretam referências do mundo gângster dá mais ênfase à ilicitude de suas ações. Em Gomorra (Itália, 2008) o jovem diretor Matteo Garrone adaptou o homônimo relato jornalístico de Roberto Saviano para as telas de forma crua e obscura, como requer o gênero.

No entanto, tal adaptação é virtuosa por mostrar o “baixo clero”, ou seja, o submundo da Camorra, a máfia napolitana que age de forma onipresente na região e possui negócios ilícitos com outras máfias como a chinesa, por exemplo. Mas o filme de Garrone não é voltado a um contexto de globalização do crime e, sim, à motricidade que faz dele um negócio lucrativo e com leis internas. O bairro onde se passa parte do filme é o retrato das disparidades sociais entre o sul (subdesenvolvido) da Itália, na qual jovens sem perspectivas profissionais e de vida almejam ingressar no mundo do crime atraídos pelo dinheiro rápido, reconhecimento perante seus superiores por intermédio das ações violentas, mas principalmente pelo contato direto com dinheiro, não importando sua licitude.

O aliciamento de jovens é uma das facetas que compõe as estruturas da Camorra, assim como cobrança de impostos e redistribuição de dinheiro para famílias protegidas pela máfia local. Se em Scarface e O Poderoso Chefão temos ícones como Tony Montana (citado no começo da fita por dois jovens dispostos a subverter os valores da máfia) e Don Corleone, em Gomorra não há essa referência a um destaque especifico, como nos clássicos de Howard Hawks e Francis Ford Coppola, respectivamente.

Uma narrativa não-linear é composta por quatro situações diferentes: o garoto Totò, embora muito jovem, pretende ingressar no submundo do crime, colaborando com a hierarquia presente. Don Ciro é o coletor de imposto e distribuidor de uma “mesada” para as famílias que pagam pela proteção e vive numa linha tênue entre o respeito à Máfia e a insatisfação agressiva para com a sua função. O veterano Franco tenta arrumar em Roberto seu sucessor como um gerenciador direto do alto comando da Camorra - todavia, Roberto vive sob a dúvida de que se o crime organizado é mesmo a melhor saída. O alfaiate Pasquale, que presta serviços a membros da Camorra, tenta resistir à sedução de trabalho para a máfia chinesa, o que pode comprometer a sua segurança.

Tais personagens não se cruzam e nem suas histórias se entrelaçam, o que da mais vivacidade e crueza à narrativa proposta pelo diretor. Os negócios ilícitos e a lavagem de dinheiro variam da produção de tecidos e roupas em grande escala, tráfico de drogas e de armas, até a desova de lixo tóxico de Nápoles. O título do filme, além da proximidade de analogia com o nome da máfia napolitana, é uma referência à cidade de Gomorra que(assim como Sodoma), segunda a bíblia judaico-cristã, foi destruída por Deus devido à prática de atos imorais.

Outro grande mérito de Matteo Garrone é a forma realista com que ele transpõe para a tela um relato jornalístico sem incursionar pelo factual. E isso fica explícito na bela narrativa e montagem do filme, assim como a coerente direção de fotografia e cenários das locações, elucubrando de forma obscura e crua que reflete à Máfia local.

O filme termina com dados coletados pelo autor do livro, Roberto Saviano, apresentando números sobre as ações violentas da Camorra: o crime organizado na Itália fora responsável por mais de 10 mil mortes, sendo que a Camorra tem participação em quase 4 mil assassinatos, além de investimentos em diversos setores econômicos, no que incidem na lavagem de dinheiro do crime organizado.

Num cinema que contribuiu com autores e obras fundamentais para a cinematografia mundial, Nanni Moretti e Marco Bellochio deram um alento ao cinema italiano, carente de grandes produções nos últimos anos, Gomorra (premiado pela Academia Européia de Cinema e pelo Júri no Festival de Cannes, ambos em 2008) se encaixa como peça fundamental na quase inexpressiva filmografia italiana dos últimos anos.

19 de dez. de 2008

"A CULPA É DO FIDEL" de Julie Gavras

Em seu primeiro longa-metragem, Julie Gavras, filha do mestre do cinema político Costa Gavras, incursiona pelo ambiente político do início dos anos 70, mas qualquer comparação entre a filmografia política e engajada do pai e o começo promissor da filha termina por aqui. O cinema político de Costa Gavras é focado num plano factual, onde a ficção e a realidade às vezes se entrelaçam, diferindo da fita de Julie, A Culpa é do Fidel (La Faute à Fidel, França / Itália, 2006), em que um conflito de ideologias políticas é retratado pelo prisma de uma criança.

A pequena atriz Nina Kervel-Bey interpreta Anna de la Mesa, menina de classe média, estudiosa e centrada que tem sua rotina mudada após a morte de um tio por perseguições políticas. Seus pais aderem ao comunismo mediante um sentimento de culpa, por não se envolverem efetivamente na militância como outros parentes de seu pai, Fernando de La Mesa, vivido por Stefano Accorsi.

Os pais de Anna viajam ao Chile, pouco antes da vitória do socialista Salvador Allende nas eleições presidenciais, e voltam sob a aura esquerdista vitoriosa em um continente dominado por regimes totalitários. Tal mudança de comportamento e ideologia afetará a rotina da menina, que deixa de cursar a disciplina de Catecismo num colégio de freiras, distanciado de algumas amigas e sentindo-se excluída pelo resto da turma. Seu irmão mais novo, François, mostra-se alheio, ou melhor, adaptado à mudança, pois sua ingenuidade infantil ainda não consegue discernir o ambiente político vigente da época.

Nesse filme, a História é encarada por viés até certo ponto revisionista, na medida em que alguns personagens mostram-se alienados perante a efervescência política e cultural dos anos 70 e, dessa forma, confundem as explicações do que está ocorrendo para as crianças de forma cômica. Qualquer explicação sobre os barbudos de vermelho que passam a frequentar a casa de Anna ou os gibis do “fascista Mickey Mouse’ confundem ainda mais e deixam a pequena protagonista à margem do que realmente está acontecendo.

Uma viagem à Espanha (ainda franquista) faz Anna revisitar um pouco da história e origem de sua família, sua rotina já foi alterada, é preciso adaptar-se a ela e Anna faz o possível para que isso ocorra. Seus pais, por sua vez, não mantêm uma sintonia sobre seus ideais e isso retrata ainda mais as dúvidas que pairavam na família de La Mesa.

E quem seria o responsável por toda essa mudança na vida e no mundo de Anna? O protagonista não visto no filme - o líder cubano Fidel Castro, cuja existência é apresentada à menina por intermédio de uma de suas babás, que foram sendo substituídas conforme a demanda e a preferência dos pais, envolvidos, mesmo que na França, com as eleições presidenciais no Chile.

Filmes cujos protagonistas são crianças sempre são válidos para termos noção de como algo é visto a partir do prisma infantil e que consequências tomam. Filmes com um ambiente político protagonizado por crianças reforçam ainda mais o convite para a singela estória de conflitos da infância.

17 de dez. de 2008

100 Anos de Manoel de Oliveira: "VALE ABRAÃO"

No início da década de 1990 Manoel de Oliveira começou a trabalhar junto com Augustina Bessa-Luís para contar novamente a estória de Emma Bovary, imortalizada no romance Madame Bovary, de Flaubert. Todavia a idéia de Oliveira era menos adaptar o romance do que re-escrever a fábula com nova forma. Por isso pediu a ajuda de sua querida amiga, a romancista Bessa-Luís. Escreveram a quatro mãos o roteiro, do qual surgiria não só um novo filme do cineasta, mas também um romance homônimo de Augustina. O filme era Vale Abraão, lançado em 1993.

Vale Abraão poderia ser chamado de um filme pós-moderno (a acusação poderia ser feita ao romance também) por realizar jogadas metalingüísticas, afinal trata-se da estória de uma nova Ema, que possui uma trajetória semelhante a personagem do romance do século XIX, sendo leitora do próprio Madame Bovary. Todavia, acusar a película de pós-modernismo é não perceber como Oliveira se afasta da maior parte da produção do cinema que lhe era contemporâneo e do próprio romance oitocentista.

Primeiro porque a Ema do português é mais sólida, densa e inteligente. Na interpretação de Leonor Oliveira, uma das atrizes favoritas de Manoel, Ema adquire uma densidade assustadora, como fazem questão de perceber a maioria dos outros personagens do filme. Ema é mostrada como uma criatura sedutora e poderosa, cuja condição de manca acentua a ambigüidade como mulher que deseja uma vida intensa e não somente ser a rica esposa refinada e desocupada de seu marido médico. Por se casar com Carlo Paiva (o estupendo Luís Miguel Cintra), médico bem sucedido, o qual não ama, investe na procura de amantes menos para preencher um vazio existencial do que por uma necessidade de viver suas próprias contradições. Desde criança, a personagem é vista por tias, pretendentes, amigos e amantes como um perigo. Os homens a cobiçam pela sua ardência, as mulheres a criticam por sua beleza. No final, exceto por Paiva, que realmente a amava, fica evidente que todos desejam algo da nova bovarinha, mas só conseguem pedaços de tudo. Todos, no fundo, parecem temê-la um pouco.

Só que isso não significa que Ema saia vitoriosa. O filme acompanha sua infância e casamento, encontros com amigos da conservadora alta sociedade do norte de Portugal, sua maternidade, enfim, segue sempre auxiliado por um irônico, onisciente, mas nada cínico narrador em voz over. Por meio dele podemos saber de sua insatisfação, perceber seus deslizes e incoerências. As vezes, a fita desvia da protagonista para mostrar muitos personagens relacionados a trama principal. Assim Oliveira faz uma radiografia do conservadorismo português frisando menos a mente pequena daquela sociedade, mas deixando evidente a profundidade que existe, os sentidos da represália à Ema, aquilo que ela ameaça, o por quê disso e o que ela realmente representa.

Inesquecível neste sentido o encontro de Paiva com Maria do Loreto, participação curta, mas espetacular da atriz Glória de Matos. Paiva fora encontrar a velha senhora e escritora que a leva por sua bela propriedade até uma pequena casa que ela própria havia construído para que seu marido pudesse se encontrar com suas amantes. Lá Maria dá conselhos a Paiva sobre o que são homens e mulheres, tendo como objetivo falar de Ema, e acaba colocando sua concepção da condição feminina: “Que quer dizer saída da costela de Adão? Que ela é algo de semi-real, que é nascida de um significado incompleto, como um costado a que falta uma costela. A sua diferenciação fica sempre imaginária como ‘coisas de mulher’, como um organismo que absorve o outro e o expulsa por ser estranho”. Aqui se reconhece a pena da grande romancista portuguesa, Augustina Bessa-Luís, que fez do romance algo tão lindo quanto o filme.

A fita poderia ser facilmente acusada de ser muito literária pela importância que o texto do narrador ou mesmo das personagens têm na trama. Todavia o aparente “descompasso” entre a câmera quase sempre estática da fita com o texto corrente, os enquadramentos que mostra quadros incompletos da ação na tela enquanto o narrador inunda o espectador de informações, fazem com que a construção narrativa de Vale Abraão acentue a construção imaginária de duas coisas importantes no cinema de Manoel de Oliveira: o tempo humano da trama e a investigação das personagens e de seus sentidos no mundo em que se encontram. Há um enigma a ser resolvido na película: qual o papel de Ema em Vale Abraão, como ela torce as pessoas e o mundo ao seu redor?

Neste sentido o filme vai construindo entre movimentos de câmera, situações e narrações as contradições de subversão de Ema no norte de Portugal. Todavia essa subversão jamais deve ser destruída, mas sim tolerada, pois fornece a uma sociedade culpabilizadora a oportunidade de responsabilizar alguém por ultrapassar os seus limites e se libertar de seus próprios pecados ao apontar a falha alheia. E apesar disso, o sentido daquele mundo humano nunca é completo, não há como chegar a conclusões definitivas sobre Ema ou Paiva ou Loreto ou quem quer que seja. Todos são personagens intrigantes e aprofundados, dos quais a fita mostra muitas coisas, mas jamais todas, sempre surpreendendo em algum momento, sempre introduzindo algum dado novo que nos faz refazer o mundo da trama.

Na saga de Ema nos espaços do vale do Douro em Portugal ninguém sai redimido e muito menos culpado, ao menos pela própria película. O olhar da fita é complacente em sua compreensão pelos personagens, interessado em mostrar-lhes enigmaticamente entre si mesmos e para os espectadores. E talvez o enigma seja a metáfora ideal pela qual Oliveira interroga o mundo com suas imagens. O grande enigma deste filme poderia ser, quem sabe, a mulher, vista pela lente de uma lente masculina (Manoel), mas com o auxílio de um olhar feminino (Augustina), ambos conservadores em muitos sentidos, mas nem por isso desatentos às contradições dos próprios conservadorismos.

Vale Abraão permanece uma das obras máximas de Manoel de Oliveira. Não carrega o lirismo de Viagem ao Princípio do Mundo (1996) ou a amorosidade magnífica de A Carta (1998). Aproxima-se talvez mais da noção de investigação que permeia Um Filme Falado (2004), só que sem a bela veia didática deste. Fica a impressão sempre de que a maturidade e a velhice de Oliveira (que já tinha 85 anos quando fez o filme) tornaram-se os melhores temperos pelos quais cada plano seu se torna uma tentativa de interrogar a vida. E como disse mestre Oliveira, que agora completa 100 anos, cada plano é um risco, como a própria vida.
 
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